13 de mar. de 2009

Memórias de um verão qualquer

A noite estava quente e sufocante. Daquelas noites em que banhos gelados aumentavam o suor e que o ventilador só espalhava mais ar quente pelo ambiente.
Abriu a janela e o gato quase pulou. “Não! Melhor desidratar que perder o gato”. Deitou, levantou, ligou e desligou a TV sem achar algo interessante. Bebeu todas as sete garrafas de água que a empregada, religiosamente, enchia todos os dias. Não havia mais o que fazer.
Ligou o computador e digitou, no Google maps: Groenlândia.
Talvez uma chegadinha via satélite até as geleiras universais conseguissem refrigerar seu cérebro. Acessou the weather channel. Mais calor. Adorava o verão mas admitia que estava insuportável. Imaginou sua família na praia...

Casa de praia mal ventilada e cheia de pernilongos. Típica movimentação noturna do descompasso familiar. Uns dormiam, outros acordavam. Uns chegavam, outros saíam pra pescar.
Ahhh...a casa de praia...lugar impossível para se sentir sozinho...O mesmo sangue corria em veias diferentes e tanta vida pulsando...lembrou do tio e sua obsessão por caçar mosquitos. Impressionante como um ser obstinado perde o bom senso. Seu tio era um exemplo típico. Durante o dia, o zelo em pessoa. À noite, um feroz caçador que empunhava sua camiseta em busca dos insetos perturbadores de sono. Quantas vezes fora acertada pela camiseta do tio. Mas sabia que não era por mal.

Outra noite, ao chegar com os primos e deitar, ouviu seu primo gritar de pavor. O mesmo tio estava a urinar sobre o filho, num sonho em que a cabeça do rapaz era o vaso sanitário.

Sabe como são as casas de praia das famílias... feitas para hospedar menos gente que a demanda...dorme-se onde dá, come-se onde dá. A prioridade era etária, obviamente...
Normalmente tomava a iniciativa de arrastar o colchão para o chão da sala e permanecer em posição de estátua para suar um pouco menos. Pelo menos até um dos cachorros da família achar por atraente a cama e o lençol limpinhos e vir, quente e ofegante, trazer mais calor ao seu suado corpo. Em pouco tempo o gesto, ou a idéia, ou a hipnose coletiva – que é como chamam gestos produzidos de forma igual em massas populares próximas – dominava a sala e transformava o local num campo de concentração dos trópicos. Eram colchões colados ao lado de outros colchões, gentes com a cabeça nos pés de um, pés na direção da cabeça de outros. E milhares de ventiladores como instrumentos de uma orquestra arejada. Cada um que se juntava ao chão, trazia seu próprio ventilador. Era determinante que na temporada, além do RG, os veranistas tivessem seus próprios ventiladores.

Acontecia também com as redes. E para evitar bate-bocas, havia um acordo tácito que dispensava rótulos dizendo de quem era a tal rede. Seu pai, no entanto, além de muito generoso, adorava redes. Tinha várias: uma rede de casal verde, outra de casal listrada com amarelo, uma de solteiro xadrez em bordô, outra que lhe venderam como gato por lebre que era azul e branca e, de tão vagabunda, ninguém usou.

Apesar dos diferentes habitantes, a casa tinha algum ritmo. Ainda de madrugada, 6h, 7h, o avô levantava-se e ia buscar pão na padaria especializada em fazer pão fresco com gosto e aparência de pão amanhecido.
O pai ou o tio já levantavam pois tinham como objetivo pescar e preparavam o café...Quando esta de pouco sono levantava, geralmente em último lugar, alguns já voltavam da praia, outros tomavam café pela 2ª vez, outros limpavam a casa, fumavam e contavam lorotas e ela, tonta, arrumava-se para ir à praia. Implorava por alguma companhia que se dignasse a torrar os miolos no sol escaldante.
“Teu pai tá lá pescando! Vai!”
Que adianta o pai lá? Fica enfiado nágua e nem me olha!
Mas isso é hora de ir pro sol? Vai ficar enrugada igual a tia nonononoo...
Que nada...
E lá ia...

A única vantagem em ir sozinha à praia era não carregar nenhuma quinquilharia a que estaria sujeita caso acompanhasse a 1ª turma: guarda-sol, cadeiras, esteiras, e outras eiras que pesavam muito...
Ficava pouco tempo e logo concluía que era melhor voltar a casa.

Como ardia aquele sol. E se mexia. Não era possível sentir-se confortável e relaxada com um sol hiperativo. Algum comentário fazia sua mãe gargalhar muito alto. Não podia perder. De quem estavam falando? Provavelmente do pai ou do tio. E resolvia que o melhor lugar para queimar o bumbum e deixar de não fazer nada, era encostada na janela da cozinha...Ihhh, mas as duas já estavam bebendo alguma coisinha. Não era suco de limão. Coitado do pai quando chegasse. Sua mãe possuía um humor daqueles que adoram tirar sarro dos outros. E o outro que ela mais gostava de amolar, era o pai. E regada à álcool, era encheção na certa.
Pois bem, chegaram os homens e sua pescaria. O avô vinha junto. Um chapéu de palha enorme,camisa aberta no peito e uma sunga meio marrom, meio preta, meio murcha.O velho sustentava as mãos nas costas e era gozador. Dava corda para a brincadeira das noras, mas seus filhos eram da raça “maridus implicantius”, e pouco precisava para um deles encabeçar uma discussão por motivo fútil.

Logo o clima esquentava ainda mais dentro da casa. O tio ameaçava, como faz até hoje, ir embora pra Curitiba. A tia debochava, como faz até hoje. O tio sumia de sunga vermelha e Ray-ban, lançando no ar palavras tensas que faziam pensar que o homem iria se lançar ao mar... coisa que hoje, já não faz...E se o tio demorava, lá iam as mulheres a caçá-lo. Encontravam-no, bem longe do mar. Invariavelmente vinha alguma vingança. Milhares de pratos e louças para os pobres homens lavarem. Quase todo dia, após o almoço, as 2 mulheres diziam que iriam comprar bom-bril, justo na hora de lavar a louça. Que nada, elas faziam isto porque os irmãos deixavam tudo limpinho enquanto elas iam até a padaria beber uma cerveja, fumar um cigarrinho ou somente sentar esperando o trabalho ser concluído.

Após o almoço uma onda de sono mortal dominava a casa...um a um se recolhiam onde bem achassem dormir, para acordar a hora de pegar o final de tarde na prainha...
A casa, até para sair, era confusa. Quem vai, quem fica, então vai que eu não vou, se você não for eu não vou, se eu for deixo a chave no pneu do carro – igual a todos os veranistas deviam fazer...O tio era sempre o último. O pai sempre o 1º. Aquele nem queria saber o que acontecia. Fazia o que tinha que fazer e o resto que se arrumasse...
Após esta confusão, ainda tinha a da volta da praia, e este outro tumulto relacionava-se a quem tomaria banho primeiro. À medida que os corpos dessalgavam-se do mar, o primitivo fiozinho indicador da quantidade de água na caixa subia. Até que os últimos tivessem que esperar, tal como numa prisão, com toalha e pertences na mão, a bomba funcionar...
Mas esta não era a briga derradeira da noite. Ainda havia o jogo de baralho. E aí as provocações que acabavam em palavrões e eram desculpados, no outro dia, com potes de geléias do agressor para o agredido.
E era uma vez um verão.

O gosto musical de minha mãe

Bach no último volume possível. Óperas diversas. Todo dia era assim: a hora do almoço se aproximava e eu, ao chegar em casa, era recebida pela minha culta e educada mãe e pelo altíssimo volume de seu indiscreto som.
Cresci ouvindo mamãe eleger Bach como o magnifíco. Bach em cravo, Bach em diversos instrumentos.
Na clássica festa musical estavam presentes compositores geniais de mesma estirpe que, vez por outra, qdo o tal do Bach talvez estivesse cansado ou entre um intervalo de troca de LPs, ocupavam seu lugar na "radiola", querendo uma chance para mostrar seu talento.
Na folga dos caras clássicos, entravam Henry Mancini, Nat King Cole em diversas versões, músicas orquestradas, MPB das originais de festivais e repertórios completos de Chico Buarque, Miltom, Toquinho, Vinícius, Caymmi (é assim que se escreve? não sei), Cartola e outros camaradas deste mesmo naipe.
E também vinham, obviamente, LPS italianos, pois mamãe era/é calabresa, álbuns dos Festivais de San Remo...Música francesa...

Cada bolachão preto era ilustrado por histórias que ela me contava para que eu entendesse o "contexto" das criações. Quando não eram histórias das músicas e dos compositores, eram histórias ligadas a importância de tal música em sua vida.
A família de minha mãe, acho que já contei - afinal, são quase 300 posts já - era musical. Alguns de nós ainda somos. Minha avó e tia-avó eram pianistas formadas. Vovó era professora de piano. O seu piano de armário ainda está na casa do Rio. Minha mãe tocava de ouvido, assim como eu faço ao piano, obviamente com mais facilidade em alguns tipos de músicas que em outras. E assim são meus primos. Instrumentos de sopro, ninguém do lado de lá. Do lado de meu pai, havia ele, que além de piano, tocava trompete de pistons e flauta.
Recentemente peguei todos os LPs de meus pais e mandei copiar em outra mídia mais "moderna"...as capas contém dedicatórias: dele pra ela, dela pra ele, deles pra mim e assim por diante. Futebol & arte, dá nisso.