3 de fev. de 2009

Meu legado

A gente não se planeja pra morrer. Quem poderia? E geralmente quem pode, perde toda a dignidade pra isso.
Mas lançarei um movimento pela "Dignidade aos defuntos"...
Porque, se pensar bem, você observa um padrão entre todos os velórios. O padrão mundial do mau gosto.
Por isso, tais como os "gentilezas", deixo em público meus últimos desejos:

1. não quero flores. Só flores de plástico.
Flores atraem mosquitos. E cheiram mal. Pelo menos as que se colocam em caixão, crisântemos. E agora, dono de floricultura descobriu uma tinta barata que pega... Crisântemos azuis. Azul calcinha de virgem. Horrível. Se quiserem colocar flores, que sejam as nobres. Mas duvido... Então, flores de plástico que não morrem jamais.
2. vou deixar a roupa separada... pq geralmente quem vem escolher, não vem bem intencionado e acaba colocando aquilo que "ele" não usaria, já querendo tascar a mão nas minhas coisas, mal esfriei...
3. não quero aquelas cruzes prateadas atrás do caixão. Não são únicas. Não foram feitas só pra mim. E mostram um Cristo sofredor. Não quero símbolos.
4. e nem velas..."quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela..."
Odeio aquela névoazinha de parafina reciclada e barbante barato. Se insistirem, só as aromatizadas. C/ essência energizante, pra ver se eu levanto, talvez...
5. não quero padre lendo Salmo 23 do Senhor é meu pastor...
6. não precisa me abençoar. E em caso de eu permanecer moribunda, não quero ninguém que ouça meus pecados. Eles vão comigo pra debaixo da terra. São meus, afinal.
7. E sem essa de velório. Aquela longa noite que rende, rende, rende... e eu não quero assistir, de onde eu estiver (se estiver em algum lugar. São tantas teorias...) algum conhecido distante chegar bem próximo do meu corpo, olhar pra minha cara, analisando-me como se eu fosse uma peça de carne em gancho de açougue e dizer: nossa, como ela está bem! (Bem? Eu estou "bem morta", isso sim).
*minha tia-avó, ao chegar no velório da irmã (minha avó), párou ao lado do caixão por muito tempo. Pensamos que ela iria passar mal. Ela, no entanto, do alto de sua ingenuidade, disse-nos: nossa, mas como a Elvira está pálida!

8. se possível, não me façam passar por esse vexame de velório. Morri. Enterrem logo.
9. e tenho medo das notas de jornal. Sempre mentem, pro bem ou pro mal. Por isso também vou deixar o texto do anúncio da missa e tal.
10. foto pra santinho, não precisa. Eu não fiz nem pro meu pai, nem pra minha mãe. E nem pra ninguém da minha família que morreu e fiquei encarregada de dar conta do morto. Não precisa a foto, e nem o santinho. Estas coisas enterram de vez a pessoa. E a imagem que escolhem é sempre a pior. Do seu RG, por exemplo.
11. coroa de flores também não quero. Quem me conhece sabe que eu não permiti coroas nos velórios dos meus pais. Se bem que minha mãe recebeu uma assinada pelo Sílvio Santos. E ela detestava o programa dele. Mas eu trabalhava no Anhanguera naquela época, embora eu saiba que quem mandou mesmo foi o Mario Stellita e o João Almeida.
12. livro de visitas, pra quê? Ninguém sabe onde vai parar depois...

E agora, o mais genial. Resolvi que, como não quero nenhum desses rituais, posso me dar ao direito de ser lembrada e chorada até que a última criatura de minhas relações saiba de meu fim.
É só seguir as orientações acima. Ninguém saberá que morri. Aos poucos, quando vierem perguntar por mim, a notícia derradeira. Morri. Como um lento viral. Sempre haverá alguém pensando que sumi, ou que estou viva em algum lugar, ou simplesmente nem pensando - o que é mais comum... Mas quando souberem que morri, sempre haverá um choro no meio da noite, uma lembrança unilateral ou alguém rindo e dizendo: já foi tarde!

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