9 de fev. de 2009

Meu pai

Esta história é real, não é engraçada e não deve ser lida por pessoas impressionáveis.

O acidente cruel e violento que levou a vida de meu pai, quase levou minha sanidade. Um dia, quando tiver coragem, conto como foi este acidente. Por enquanto não me permito...
Mas enfim...
Não sei que mecanismos são ativados neurologicamente para que não lembremos em detalhes de tudo o que aconteceu em tragédias desta natureza. Este"botãozinho" é o que nos salva, pois se eu tivesse total consciência das lembranças dos momentos seguintes, eu não suportaria viver.
As pessoas que estavam comigo dizem coisas que eu não lembro. De jeito nenhum.
Outras situações eu recordo, mas não sei se é porque me contaram tanto que eu acabei acreditando nesta versão.
O que eu me lembro, e que é o suficiente para me causar taquicardia, é de um tempo enooorme que os médicos demoraram para remover meu pai. De eu ter, pela primeira vez, nenhuma esperança quanto à sua sobrevivência. Dele ter tido uma parada cardiorrespiratória na minha frente e eu ameaçar o médico com uma arma para que ele fizesse alguma coisa.
Lembro do meu primo me puxando pra longe e me abraçando, retirando o revólver da minha mão. Do meu tio, irmão do meu pai, junto aos médicos. E de pessoas chegando. Amigos e parentes que eu não posso dizer com exatidão quais eram...Isso era uma quarta-feira, perto da meia-noite.

Lembro de ter pego meu carro e saído correndo pela cidade, furando todos os sinais, sem ter consciência de que aquilo era uma tentativa suicida... Eu já havia ingerido alguns calmantes por conta própria e outros que me deram...então, na rua, eu lembrava que tinha que voltar pra casa e contar ao meu pai o horror que eu estava vivendo.
Mas logo eu me lembrava que ele, pela primeira vez, não poderia me consolar, me abraçar ou dizer que não era nada, já que aquilo era com ele. Qdo isso acontecia, eu sentia golpes de ar no meu estômago...
Então eu voltava ao local do acidente com a esperança infantil de que tudo já estivesse resolvido. A ambulância ainda estava lá. Ainda não tinham retirado meu pai. Eu brigava, agredia a equipe de socorro. Ligava para os médicos conhecidos. Colocava-os em contato com o médico que estava no acidente.
Foi quando eu vi o médico examinando as pupilas de meu pai e dizendo: glascow 3.
Eu sabia o que era Glascow 3. Venho de uma família de médicos. Glascow é uma escala que vai de 3 a 15, sendo a 15 a que corresponde a uma pessoa normal, lúcida, sem danos cerebrais... 3 é a pior pontuação. Significa atividade cerebral não-responsiva. Coma. Estado vegetativo.

Depois de umas 2horas e de eu ter saído novamente com meu carro, corrido e voltado... a equipe ainda estava lá. Eu berrava, tapava os ouvidos, escondia a cabeça como se isso ajudasse.
Algumas pessoas me deram mais ansiolíticos, outras me davam água e açúcar... sei lá... nem lembro mais.
Enfim a ambulância saiu e eu não tive coragem de ir junto. Meu pai sangrava muito. Estava entubado e uma amiga de casa o acompanhou. Soube que ele teve mais 4 paradas cdr dentro do veículo. E voltou rapidamente com manobras de ressuscitação. O coração dele era fortíssimo. Ele era atleta. Tinha ido à natação naquele dia de manhã. Jogado baralho à noite...

Eu fui no carro de alguém. Acho que do meu tio.

Esperei meu pai entrar e alguém preencher a papelada burocrática.
Fiquei na frente do hospital com algumas pessoas, mas só lembro do meu tio me olhando e dizendo: calma, menina.
Entrei. O médico socorrista saiu e veio me dar um abraço. Ele estava todo ensopado de suor e nervoso. Não ligou para a ameaça que eu fiz a ele no local do acidente.

Eu não queria falar com ninguém. Sentei bem longe de todo mundo. Mas sempre tem alguém que vem ficar ao seu lado.

Passou-se um tempo. Eu estava totalmente dopada. Minhas tias e o médico vieram dizer para que eu me despedisse do meu pai. Eu falei que não iria me despedir porra nenhuma, o que eles estavam pensando???

E fui para o carro do meu primo. Cansada e dopada.
Fui pra casa. Veio um bando de gente junto pra dormir comigo. Isso eram 4h da manhã.
Acordei com ânsia. Com um desespero branco.

Meu pai, soube, tinha ido para o IML (eu nunca imaginei que meu pai fosse parar naquele local horrível) e o corpo não tinha sido liberado.
Não quis saber de nada. Deixei tudo por conta dos meus tios.
E resolvi não ir ao velório.
Enquanto isso, na minha casa, os amigos de futebol dele não paravam de chegar. Eu estava deitada na rede dele. Na rede verde que compramos dois verões atrás, em que ele se deitava todo dia. Falavam comigo e eu não respondia.

Por insistência, acebei indo ao velório.
Quando cheguei já havia bastante gente. E foi surreal minha entrada: eu andava como se fosse uma espectadora distante. Via uma caixinha de madeira capaz de levar toda a vida do mundo, na morte. Via a caixa suspensa, em pedestais circenses. Não acreditava que meu pai poderia estar lá. Como????
Eu via que todo mundo esperava uma reação teatral minha. Me aproximei. Não era ele. Por que ele dormia tanto? Por que estava com uma blusa que ele não usava? Por que não colocou as novas que tínhamos comprado? E o cabelo dele, loiro e liso como pluma, estava pra trás. Não era assim que você usava, pai. E aquele terço em suas mãos, no peito. Quem colocou? Vc nunca foi muito de igrejas e terços... E vc dormia sem o seu famoso ronco. Não era você pai. E não havia os sons de jogo de futebol por perto. Não havia rádio e tv ligadas. Nenhum chocolate ou doce por perto. Não era você pai. Todo o meu pai não poderia caber naquela caixa de madeira impessoal.
Vc não estava perfumado, e você adorava perfumes. Você não trazia o apito amarrado a uma corda no pescoço. Você não empunhava um agulha gorda com linha pra remendar bolas de futebol do jeito que você aprendeu com um amigo que foi presidiário. Então não era você, pai. E não tinha música no último volume. Não era você quem estava ali.

Eu lembro que tomava mais e mais drogas. E dormi todo o resto do dia e a noite. Me acordaram para a benção do padre. Este padre que vá para o inferno, pensei. E continuei deitada.
Estava na hora de meu pai ir (pra onde???). Os irmãos e sobrinhos foram se despedir (aqui é um hábito). Eu beijei meu pai. Mas não era ele. Meu pai era vermelho, um ítalo-alemão-polonês de tez sadia e quente. Aquele na caixa estava frio. Beijei-o. Não era meu pai.
Seguimos para o enterro. Eu, sem nenhuma força, pedi para entrar na van da funerária, junto ao caixão. Não conseguia nem andar.
Eu não lembro de mais nada. Me disseram que estava lá. Mas eu não lembro. Dizem que meu pai está naquele lugar. E eu não lembro.
Se ele foi mesmo, por que deixaria as coisas que ele gostava, títulos, chuteiras e bolas aqui???
Tem algo errado nisso.

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